Passados quase dez desde que li e estudei, pela primeira vez, “Autobiografia Científica” do arquiteto Aldo Rossi (1931-1997) e trinta e cinco anos desde a sua primeira edição, pelo MIT, num formato pouco comum, consigo nomear duas questões fundamentais: 1. as experiências de vida, a maturidade e o conhecimento, que vamos ganhando ao longo das nossas formações e percursos, influenciam determinantemente o modo como interpretamos os mestres e como os mestres se interpretam; 2. categorizar esta obra reduz e enfraquece o espectro da sua mensagem.
Esta é uma obra do contexto Pós-Moderno, erudita, informada e emotiva, escrita na primeira pessoa, que nos informa sobre memória e linguagem, apresentada a dois tempos: o homem e o arquiteto. É essencial, para o autor, que consigamos alcançar o modo como as escolhas e vicissitudes da vida do homem informaram o arquiteto e como o arquiteto moldou e direcionou as escolhas do homem. Um é indissociável do outro, um e outro são um só. É, por isso, uma obra que compila uma série de notas pessoais, após um grave acidente em 1971, mas não é só uma narrativa biográfica. É uma viagem que nos transporta aos lugares, cheiros, formas, pessoas e edifícios que marcaram a vida do homem e informaram as metodologias conceptuais do arquiteto, como o próprio nos informa “para mim o projeto de arquitetura, agora, identifica-se com estas coisas; há uma rua em Sevilha feita de galerias sobrepostas, pontes aéreas, escadas, de barulho e de silêncio que em cada desenho me parece estar a repetir. Aqui a pesquisa cessou é a arquitetura reencontrada faz parte da nossa história social; a invenção gratuita é recusada, forma e função estão agora identificadas no objeto; o objeto faça parte do campo ou da cidade, é uma relação de coisas; não existe uma pureza no desenho que não seja a recomposição de tudo isto e o artista, no final, pode escrever como Walter Benjamin, «porém, eu sou deformado pelas conexões, com tudo aquilo que aqui me rodeia»” (p. 45).
Esta narrativa ilustrada com cerca de 100 páginas convida-nos a refletir sobre várias questões ao mesmo tempo que nos vai informando sobre as referências, espaços, lugares e autores das mais diversas áreas científicas, que informaram Aldo Rossi ao longo do tempo. O início desta obra pode descrever-se como um balanço entre a vida profissional – arquiteto e pessoal – homem (p. 21). É também uma enunciação das referências em que o autor se baseou para redigir a sua “Autobiografia Científica”, onde se destacam a “Comédia” de Dante e a “Autobiografia Científica” de Max Planck, mas acima de tudo as associações entre pesquisa científica e autobiográfica à morte (p. 22). É uma primeira exposição do seu glossário arquitetónico (que viria a desenvolvido adiante). Rossi faz-nos ponderar sobre a importância dos factos do ponto de vista formal, a questão do fragmento (uma parte de um todo, já irreconhecível e transformável (p. 33)) e a importância da osteologia, pela questão estrutural. Seguem-se as reflexões sobre a questão do Lugar e do Tempo, a primeira condição da arquitetura (p. 87), e como estas conduziram o arquiteto ao conceito de identidade (p. 43), reforçando sempre a importância da história-realidade e das memórias pessoais do homem. E depois transporta-nos para outra dimensão de pensamento muito pessoal, o arquiteto faz-nos deambular entre técnica e fantasia, são apresentados, aos leitores, os Teatros (p. 56). Ressalto ainda a questão dos símbolos (janela, escala figurativa, o muro, repetição e cópia), as ferramentas que conduzem à fantasia ou à ação, identificáveis em quase toda a obra de Rossi, e que vão estando presente um pouco por toda a narrativa.
É um escrito essencial na formação de um arquiteto, tão essencial como a arquitetura é “o elemento primário no qual se insere a vida” (p. 46), porque nos informa sobre o seu modo de fazer arquitetura, mas não é apenas um ensaio, um tratado, ou mesmo um manifesto. Alguns temas recorrentes compõem a narrativa e vão-nos informando, a cada partilha, sobre a arquitetura de Aldo Rossi: morte, tempo, lugar, cenografia, memória, fragmento, fantasia, realidade e símbolo.
A cada leitura destes escritos (re)descobrimos e que as experiências do homem são as ferramentas de trabalho do arquiteto, materializadas na sua obra escrita e edificada, assim “este livro poderia, indiferentemente, intitular-se Esquecer a Arquitetura, porque posso falar de uma escola, de um cemitério, de um teatro, mas é mais rigoroso dizer que falo da vida, da morte, da imaginação” (p. 119-120).
Aldo Rossi – Autobiografia Científica. Lisboa: Edições 70, 2013.