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João Ferreira Nunes

joao.nunes@proap.pt

Arquiteto Paisagista, PROAP – Estudos e Projectos de Arquitectura Paisagista, Lisboa, Portugal

 

Para citação: NUNES, João Ferreira – Transformação da paisagem em áreas de vale. Estudo Prévio 22. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2023, p. 126-146. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/22.HEP.3

Transformação da Paisagem em Áreas de Vale

 

Resumo

Resultado de uma conferência proferida no âmbito dos Seminários I e III “Habitar o Espaço Público”, com a coordenação de Bárbara Silva. Este texto discute o propósito e os princípios que, hoje, presidem a intervenções de transformação da Paisagem a partir da observação de áreas de vale.

A Paisagem constrói-se por sobreposições sucessivas, num processo que se iniciou em Eras geológicas há muito passadas, mas em que se verificou exatamente o mesmo tipo de processo que, hoje, justifica a mesma tectónica – por sobreposição – na construção dos diferentes estratos do Antropoceno: a Paisagem corresponde à inscrição de marcas no mundo que resultam de processos únicos, que se verificam, durante mais ou menos tempo, mas apenas uma vez.

O período geológico Carbonífero é um excelente exemplo dessa irrepetibilidade – iniciado com o momento em que as plantas se começaram a desenvolver na Terra, eventualmente descendentes das algas que, primeiro que todos, “inventaram” a fotossíntese, vão-se acumular durante milhões de anos os seus materiais constituintes não decompostos, uma vez que as bactérias e fungos então existentes não tinham a capacidade de sintetizar as enzimas necessárias à decomposição das plantas. A partir do momento em que bactérias e fungos “descobrem” como fazê-lo, as plantas deixam de se acumular sem decomposição e os seus materiais constituintes, em vez de se acumularem em espessas camadas, que constituirão os carvões minerais e os petróleos do futuro, são decompostos, reusados e reintroduzidos nos processos ativos do mundo, estabelecendo-se um limite que determina também a irrepetibilidade futura da condição a que corresponde o período geológico.

O que mudou tem, de certa forma, que ver com conhecimento, com o conhecimento, por parte das plantas, das técnicas extraordinárias para estabelecer a incrível ponte que liga o mundo mineral ao mundo vivo, para transformar moléculas minerais de Oxigénio, Dióxido de Carbono, Vapor de Água, com o conhecimento, por parte das bactérias e fungos que decompõe os materiais vegetais, das técnicas e dos instrumentos necessários à desmontagem dos materiais vegetais nos seus elementos constituintes… Da mesma forma, pensando agora nas regras da tectónica do Antropoceno, o conhecimento de novas tecnologias tem vindo a transformar a Paisagem, e o exemplo da generalização da tecnologia dos motores a explosão é um excelente exemplo… mas também o conhecimento, para além da novidade tecnológica, gera mudanças na forma de entender o Mundo: por exemplo, drenar uma zona húmida, um pântano infértil e doentio, para produzir terreno agrícola para a produção de comida, que durante milénios foi considerado um benefício consensual, é considerado, hoje, um crime ecológico. Os valores alteraram-se.

O que antes era visto, consensualmente, como uma vantagem e um benefício coletivo, passou a ser visto como um crime punível por lei. E isto porque se descobrem coisas, se aprofundam os conhecimentos sobre processos que pareciam benéficos, mas que, de facto, escondiam armadilhas invisíveis.

A paisagem vai-se desenhando em constante dinâmica e em consonância com os valores vigentes. A nossa capacidade de perceber as coisas vai definindo a nossa relação com o mundo, e o modo como o transformamos. Ao longo do tempo o homem foi transformando o território, acreditando que o estava a fazer da melhor maneira ou, simplesmente, desconhecendo as possíveis consequências negativas.

Não que os que viveram antes de nós fossem criminosos… Não podemos julgar o pensamento dessa época de acordo com o que se pensa nos dias de hoje. A necessidade de solo produtivo na época medieval era política, mas era também proporcional à frequência com que as populações eram expostas à fome… Por outro lado, as zonas húmidas não eram, como são hoje, uma raridade. Da mesma maneira, em relação ao modo como a Paisagem dos Vales se foi construindo, podemos aplicar essa forma de pensar.

Nos Vales, os problemas de construção do território são problemas de negociação entre continuidades… A grande questão é decidir que tipo de continuidade nos interessa privilegiar em cada momento. O texto segue uma sequência de imagens, apresentadas ao público em projeção ou desenhadas no momento, pelo que a presente transcrição poderá, em alguns momentos, parecer sinuosa e destruturada, pelo que se considera que a referida sequência de imagens deverá fazer parte integral deste texto.

 

Palavras-Chave: arquitetura paisagista, Lisboa, Vale de Alcântara, paisagem

 

Introdução

Um vale é uma morfologia topográfica que pode ocorrer a escalas muito diferentes e com configurações muito variadas. É um elemento fundamental da Paisagem e a compreensão do seu funcionamento é essencial para a possibilidade de formular propostas para a sua transformação.

Ligado à forma e dimensão do elemento vale, e desses parâmetros parcialmente resultante, amém das condições climáticas, podemos descrever o metabolismo da água na Paisagem, os seus fluxos, a sua fundou a, as duas posições e a variabilidade dessas posições ao longo do tempo, dos tempos breves, das variações cíclicas sazonais, e dos tempos longos, das variações maiores de dimensão e, consequentemente, de posição das linhas de água.

A água sempre foi fundamental enquanto recurso para a vida dos animais e das plantas e enquanto elemento essencial das atividades produtivas, enquanto matéria prima, enquanto veículo, enquanto energia, funcionar os moinhos, as azenhas, os pisões, as serrações, as fábricas.

A água dos rios era uma energia preciosa, que servia para mover, transformar, produzir, distribuir. Quando começámos a obter formas alternativas de energia e de abastecimento dos centros urbanos, virámos as costas aos rios e lentamente fomos deixando que se transformassem em esgotos, com a única função de remover, com o seu fluxo o que não queríamos na cidade. As estradas e as infraestruturas de mobilidade assumiram o painel de protagonistas na construção das cidades que se virou para estas novas frentes.

Outros sistemas foram sobrepostos aos sistemas naturais das linhas de água, que foram desviados, fechados, cobertos, para proporcionar mais espaço nas cidades. Essa transformação, vista como um aspeto mais abstrato e mais conceptual, é uma discussão sobre a ideia de “continuidade” e sobre a atribuição de prioridades e hierarquias às diversas continuidades na Paisagem.

E podemos perguntar: queremos defender a continuidade funcional da linha de água ou a continuidade do seu desenho? Defendemos a prioridade da continuidade da linha de água ou a da autoestrada que a atravessa?

Essa é a negociação fundamental que tem a ver com a súbita mudança de escala, e de modo de vida, que fez com que os territórios de consumo estejam relacionados com os territórios de produção através de sistemas físicos que se desenvolvem nos Vales. Como fazer chegar produtos frescos às cidades? Como fazer chegar pessoas às Cidades? Como estabelecer prioridades na competição por espaço nos vales cuja secção não chegará para tudo?

Se olharmos para a paisagem à volta de Lisboa, percebemos que há vários problemas de saturação dos vales, de saturação e de competição entre as distintas funções que concorrem por espaço com as linhas de água, em espaços de vale que são limitados.

E só quando acontece essa saturação é que as cidades se sensibilizam para os problemas de drenagem que se agravam. O maior problema das alterações climáticas nas cidades não é a subida do nível do mar, mas sim a alteração radical dos regimes de chuva em termos de intensidade e o escoamento da água das chuvas em sistemas já subdimensionados nas actuais condições.

As questões de subida do nível do mar, para além de serem atenuadas pela evolução natural dos processos adaptativos da sedimentação costeira, que responderá de forma imperceptivelmente evolutiva às lentas evoluções de nível, que noutros ciclos climáticos baixará, poderão ser contrariadas de forma activa através de ações construtivas simples.

Pelo contrário, a densificação das cidades e os nossos processos de construção de infra-estruturas acentuam o agravamento das condições de drenagem das águas das chuvas resultante das alterações climáticas, reduzindo os tempos de concentração das bacias, acelerando os fluxos através de canalizações, superfícies impermeáveis e colectores e aumentando assim a probabilidade de ocorrência de cheias desastrosas.

Concretamente, no vale de Alcântara, em Lisboa, há um problema relacionado com questões de utilização direta do solo e das infraestruturas, e também um problema de escala. Por este vale passam as infraestruturas que vão de norte a sul do país. Ou seja; é um problema que não depende somente de Lisboa, mas sim de todo o território continental e a pressão sobre a bacia que as grandes infraestruturas exercem corresponde não à resolução de questões locais, mas sim a questões de interesse nacional e regional.

Temos de começar a olhar para a cidade não só através das suas freguesias, bairros e ruas, mas também através das grandes infraestruturas territoriais, caso contrário não conseguimos entender a dimensão do problema.

Os problemas infraestruturais que aqui acontecem (no vale de Alcântara) têm de ser incluídos numa discussão nacional de planeamento.

Olhando para a cidade de Lisboa, e especificamente para o vale de Alcântara, podemos entender que a intenção da planificação territorial era, quando a cidade de Lisboa começou a crescer, a de definir fronteiras. Vejam o parque de Monsanto, por exemplo. É claramente uma fronteira que aproveitou a descontinuidade física do vale para bloquear, tapar, fechar.

Não tinha qualquer intenção de estabelecer continuidade. Era precisamente o contrário – controlar o crescimento irregular da cidade. Naquele tempo, e naquele contexto, essa ideia fazia sentido.

Os problemas e as soluções estão presos a uma contemporaneidade e é assim que o mundo avança. Convençam-se de que nós estamos aqui a trabalhar, a tentar encontrar uma solução, numa dinâmica inserida num determinado contexto. Mas podem ter a certeza de que, dentro de vinte anos, aquilo que estamos a discutir – hoje – estará completamente ultrapassado por novas maneiras de viver e de entender a cidade e o seu território.

Portanto, se aquilo que vos interessa em Arquitetura é a definição formal de um objeto, creio que estão a perder tempo. Esse não é o instrumento para resolver um problema. Nunca foi. O instrumento para resolver problemas é pensar de que forma esse vocabulário, essa linguagem, consegue transformar um território, através das relações que estabelece e da capacidade dessas relações para se adaptarem às novas condições de um tempo cujas necessidades somos incapazes de prever.

O que estamos hoje a desenhar são relações, não estamos interessados em objetos. Os objetos interessam enquanto instrumentos de produção e de resolução de problemas e a sua valia formal faz parte de uma cultura que me parece profundamente ultrapassada.

Eu creio que, neste momento, temos que olhar para a Arquitetura não como um produtor de objetos em si mesmos, que são pensados mais para serem fotografados do que para serem vividas ou para cumprirem uma função num contexto social, que constituem símbolos de si mesmos ou da vaidade dos Arquitetos, mas principalmente naquilo que possa produzir relações ativas. Estimular as pessoas a interagirem umas com as outras, ou com as outras comunidades, isso é construir Cidade.

O tema de “estabelecer relações” é o tema mais atual que podemos imaginar num Mundo pendurado na Internet…

A escola onde eu ensino, a Academia de Mendrisio, está a trabalhar agora no contexto de Bruxelas com o tema de Diploma – a construção de cultura.

Durante alguns dias estivemos totalmente imersos na Cidade, a tentar descobrir como é que aquela cidade se tinha transformado, o que tinha conseguido fazer de construção de relações entre pessoas. Percebemos que muita dessa transformação se deu através da cultura. Cultura é construção.

Admiramos, nessa Cidade, uma cultura que se afirma etiquetada como “uma única”, mas sabemos que existem dez mil culturas a fervilhar por baixo. A verdadeira manifestação cultural é a vida das pessoas, muito mais interessante do que os objetos produzidos pela cultura dominante…

O facto é que, quando se fala de Bruxelas ou fazem uma pesquisa sobre Bruxelas, aparecem duas coisas, o papel de Bruxelas na política europeia e o papel de Bruxelas na cultura; o papel de Bruxelas na cultura é uma construção intencional objetiva.

Foram investidos centenas de milhões de euros na construção de uma identidade cultural da cidade. Construíram-se artistas como valores com a consciência de quem produz um produto. E tornou-se muito mais relevante a relação que constrói a dimensão artística destes grupos do que os objetos produzidos.

Em Portugal, temos uma grande resistência a reconhecer valores, a aceitar heróis. Só conseguimos que nossos heróis sejam reconhecidos quando já estão mortos e não fazem sombra a ninguém…durante a vida, a comunidade que serviram, por vezes exemplarmente, não foi capaz de lhes reconhecer valor… Se contrariássemos essa tendência, conseguiríamos, talvez, construir valores coletivos que poderiam ajudar a criar uma identidade cultural construída naturalmente na admiração e baseada na celebração e não na inveja.

No Vale de Alcântara, o território objeto deste workshop (que está a acontecer ao mesmo tempo dos Seminários “Habitar o Espaço Público”, onde está inserida esta conferência), queremos transformar, radicalmente, a grande construção territorial existente: o grande limite na cidade de Lisboa – o parque de Monsanto -, uma fronteira que diz: aqui a cidade acaba. E nós estamos aqui a dizer que não acaba, que pode ser discutida a consistência dessa fronteira…que talvez faça sentido olhar para o parque de outra maneira. Monsanto é um parque florestal, não é urbano. Não foi pensado para as pessoas passearem ou passarem o dia com os amigos a fazer um piquenique. Os equipamentos que existem no parque não se relacionam visualmente com o que está a volta, são equipamentos que não têm nada a ver com a circulação, não foram pensados para a atividade humana. Temos um estádio ao qual chegamos por uma via-rápida, ou seja, geram-se encontros pontuais, sem nenhuma continuidade.

Quando o parque de Monsanto foi desenhado, o desafio prático de Joaquim Rodrigo (mais conhecido como pintor, com uma obra extraordinária, mas também engenheiro florestal, com esse incrível trabalho no curriculum) foi conseguir plantar árvores naquilo que era um torrão árido e deserto que correspondia a séculos de um cultivo muito intensivo de cereais para a cidade de Lisboa. Mas o desafio conceptual foi o de consagrar um enorme espaço a uma função social quase invisível – a ideia de pulmão verde – e, com isso, não apenas materializar uma ideia de desenho higiénico do espaço e das relações entre os grandes espaços da Cidade, mas também marcar o seu limite…

O nosso desafio de hoje, num contexto em que o Parque de Monsanto foi passando da figura de Parque Florestal, que era, para um Parque habitado, foi o de reverter a ideia de limite, tentar reinterpretar essa função e inventar uma nova relação com o que existia.

O segundo desafio corresponde a reverter completamente a ideia de que a dominante estrutural do vale de Alcântara é longitudinal, porque é o suporte de infraestruturas sucessivas que se vão sobrepondo e encontrar o seu sentido como constituída por diferentes formas de perfil transversal.

Dos estudos que foram feitos para a ETAR resultou uma quantidade interessante de documentação sobre a transformação sucessiva de Alcântara, nomeadamente sobre a atribuição sucessiva de importância às conexões longitudinais, seguindo a maior dimensão do vale, sobre as transversais que eram, ao princípio, dominantes.

Alcântara possui uma vocação, posicional, topológica, e inclusivamente geológica, pela estabilidade que assegura e pela sua condição limite, que é infraestrutural por excelência.

Tudo o que é infraestrutura veio parar ao vale, a começar pelas primeiras linhas de caminho-de-ferro que aqui se acomodam, por razões que são topográficas e, evidentemente, geológicas.

A bacia hidrológica de Alcântara não é uma bacia muito grande, em absoluto, mas desempenha um papel importante devido a outras características da bacia, forma e declive, contribuindo para que este vale seja rico e produtivo, mas também exigente em termos do espaço para a drenagem.

A concorrência por espaço entre as diferentes funções que se desenvolvem longitudinalmente – infraestruturas e drenagem – é a história deste vale, que deixa também perceber o continuo enfraquecimento das conexões transversais ligeiras, completamente apagadas pela prepotência das grandes ligações longitudinais e substituídas por ligações de grande escala, pontuais e que concentram extremamente os fluxos.

A questão hidrológica tem um sentido topológico, ou seja, os pontos de uma bacia hidrológica estão ligados entre si por uma espécie de condição de partilha de tudo o que acontece dentro independentemente da distância linear. As cabeceiras das bacias contíguas, mesmo sendo espaços imediatamente conexos, funcionam em metabolismos diferentes e tem entre si relações frágeis.

O vale de Alcântara é, geologicamente, um vale de mistura basalto-calcário, muito característica desta zona e de algumas zonas quer do lado de Campo de Ourique, quer do lado de Monsanto e da Tapada da Ajuda.

O basalto como rocha-mãe, resultante de erupções vulcânicas, com inclusões de calcário, que resultam de pedaços dos estratos anteriores sedimentares que “flutuam” nos materiais eruptivos e que oferecem contrastes lindíssimos entre terras muito escuras, com pedras muito pretas e que de repente têm incrustações de calcário branco. Creio que está condição geológica marcou mitos aspetos da arquitetura da Cidade, a começar pelos temas das calçadas.

A maneira como o basalto e o calcário respondem à água, as formas de erosão e as questões de infiltração são completamente diferentes e originam estratos vegetais muito diferentes. Estes contrastes estendem-se a todos os aspetos da vida da Cidade e originam a grande diversidade que é tão característica de Lisboa.

Quando analisamos a topografia do vale e sobrepomos essa topografia à planta geológica conseguimos perceber, com muita clareza, a correspondência direta entre a topografia e as razões genéticas dessa topografia.

Alexander Humboldt, geógrafo alemão, interessou-se em explicar cientificamente o relevo, em compreender a forma… Antes dele o relevo era constatado, desenhado e celebrado nas pinturas de paisagem, tecnicamente era representado nos levantamentos topográficos, mas não era explicado.

Tal como as paisagens se vão sucedendo, o conhecimento científico também.

Tudo está em constante movimento – um oceano expande-se o outro oceano contrai. Esta ideia, para nós, que estudámos nos bancos da escola depois dos anos sessenta, faz parte do nosso património cultural básico e constitui uma ideia indiscutível…. fomos formados com a teoria da Pangeia, que explica o movimento das placas tectónicas do mundo.

Mas essa teoria foi apresentada no princípio do século XX, quando Alfred Wegener observa o formato da América do Sul e de África, cujas linhas costeiras formavam um encaixe perfeito, sugerindo que estiveram juntas em algum momento do passado geológico. Esta teoria foi ridicularizada durante décadas e o seu modelo de representação desacreditado cientificamente.

Só depois da segunda guerra mundial é que a teoria ganha alguma credibilidade, chegando aos bancos das escolas muito recentemente.

Esse acréscimo de conhecimento, tal como sucedeu com as plantas e com as bactérias e fungos, fará com que o Mundo que marcamos com os nossos sinais, a Paisagem que à Luz desse saber construímos, seja um Mundo diferente do passado porque construído com a consciência de um Mundo único e dinâmico, em contraste com um Mundo dividido e estático, feito de diferenças e de barreiras.

Da mesma forma, a nossa geração, e a vossa, por consequência, não poderá, depois da decifração da hélice de DNA e da descoberta de que o desconhecido, que viaja ao nosso lado no metropolitano, diferente de nós na cor da pele, na textura do cabelo, na forma dos olhos, na estatura, em toda a aparência, compartilha connosco o mesmo DNA, diferente em pouco mais do que o do nosso irmão de sangue, construir um Mundo da mesma maneira que se fazia antes.

A consciência de um Mundo único e dinâmico, habitado por uma humanidade que é uma grande família, muito próxima geneticamente, constitui um contexto de partida para o trabalho de transformação do Mundo que levará, sem dúvida, a resultados surpreendentes.

 

Paisagem e domesticação

Aquilo que se passa a escala global na interpretação do mundo, passa-se, evidentemente, na interpretação dos lugares, na interpretação de cada um dos sítios que nós tocamos. A compreensão dos lugares passa pela decifração do relevo, da topografia, da razão de ser das posições das plantas…

A Paisagem enquanto artefacto constrói-se com os instrumentos diferentes da construção de artefactos: por um lado os instrumentos correspondentes à produção de artefactos por fabricação …

Os processos de fabricação de artefactos são processos de assemblagem de elementos dispersos, não relacionados na sua condição original, e cujas novas relações produzem resultados nunca antes existentes…transformando o Mundo. Produz-se uma cadeira, um telemóvel ou um edifício a partir de um momento zero, anteriormente ao qual esse artefacto não existia de tudo, era inimaginável, e eram inimagináveis as transformações que traria ao Mundo, à Paisagem…outra característica da produção de artefactos por fabricação é o facto de se usar transversalmente o corpo humano como medida…do telemóvel à Cidade, todos os artefactos de fabricação se relacionam metricamente com o corpo humano

Outro conjunto instrumental da produção de artefactos corresponde ao vastíssimo mundo da domesticação …neste contexto são produzidos artefactos como todos os animais e plantas que fazem parte do Mundo domesticado – quase exactamente coincidente com o Mundo de hoje.

O contexto instrumental da Domesticação na construção da Paisagem difere do da fabricação por não partir de um “momento zero” – de facto os artefactos são extensões transformadas ao longo do tempo da condução natural original – e, de modo simétrico, por não ter um momento final… se o resultado de um processo de domesticação deixa de interessar a uma comunidade, adapta-se, transforma-se, ou desaparece sem resíduos físicos que refiram a sua presença ativa.

Por outro lado, o artefacto produzido por domesticação não se constrói com um dimensionamento obtido a partir da medida do corpo humano como standart, mas sim a partir das dimensões inerentes ao próprio processo da domesticação e aos grandes metabolismos domesticados.

Quando desenhamos sistemas de terraços na montanha, os terraços têm de ser acessíveis às pessoas, para plantar, cuidar, etc., mas o que desenha a grande topografia dos terraços são as condições da própria montanha: as pendentes, a consistência dos terrenos, os ângulos de talude natural.

O mesmo quando pensamos no desenho de diques, os processos de domesticação das margens naturais dos rios …

A dimensão do corpo humano, ao contrário do que acontece nos artefactos de fabricação é uma dimensão que apenas é útil para conseguirmos estabelecer as condições de acesso, de manutenção, de trabalho, mas não é o fundamento arquitetónico, como acontece nos edifícios. Aqui, todas as medidas são coordenadas por esse módulo, por essa matriz que descende da nossa forma e da nossa dimensão.

O nosso ponto de partida, o nosso standard, tudo aquilo que temos que entender para conseguir trabalhar é a preexistência. Se não entendermos a preexistência em todas as suas escalas, em todas as suas dimensões e em todos os seus tempos, nunca conseguimos fazer um trabalho decente em paisagem.

 

Paraíso, Natureza; Artifício – Paisagem

Figura 1 – Fotograma de “Os contos de Canterbury”, 1972 (Disponível em: https://filmscoop.org/2009/08/21/i-racconti-di-canterbury/. Consult. maio 2023).

 

Estamos a ver alguns fotogramas do filme “Os contos de Canterbury” de Pier Paolo Pasolini.

Nesta abertura, porque são os fotogramas iniciais, Pasolini apresenta-nos uma Eva e um Adão que passeiam num paraíso que é representado por um jardim de Topiaria…

Um Jardim de Topiaria é a coisa mais artificial e mais artificiosa que podemos imaginar e a sua escolha para representar o Paraíso é uma mensagem importante é que se relaciona muito com o que fazemos em Arquitetura Paisagista.

Na nossa cultura corrente, de raiz católica, o Paraíso é um estado perdido, por castigo, de perfeição da natureza e da nossa relação com ela. O Paraíso afirma-se com um estado Natural culpavelmente perdido e não como um artefacto intencionalmente procurado.

Mas na mensagem de Pasolini não é uma condição perdida, mas um objetivo comum a atingir.

A proposta do Paraíso como um espaço de construção artificial (e coletiva) produz imediatamente a ideia muito otimista de que a construção do Paraíso se faz todos os dias, num processo de continuo melhoramento, de aproximação gradual a uma condição maravilhosa de harmonia e perfeição.

É profundamente contrária à ideia nostálgica e conservadora de que antes de estava melhor. Não é verdade. Antes estava-se pior. Vivia-se pior, vivia-se menos, compreendia-se pior o que se passa à nossa volta e sofria-se mais. Envelhecia-se precocemente e morria-se mais cedo, com mais dor e menos qualidade de vida.

E é profundamente contrária à consideração, quase religiosa, corrente nos dias de hoje da Natureza como condição perfeita.

Se nós considerarmos a natureza como indiscutível e perfeita podemos ser levados a erros terríveis de interpretação das mensagens da realidade. Não imperfeita em si mesma, mas imperfeita enquanto espaço para vivermos.

Toda a nossa história enquanto espécie é a história do nosso esforço para, a partir de uma leitura crítica, corrigirmos os aspetos em que a Natureza constitui para nós uma ameaça, um perigo, um desconforto… Esta crítica é a essência da Arquitetura e da Construção da Paisagem.

Não sobrevivemos na natureza não domesticada. Essa é uma ilusão construída a partir de uma cultura que construiu o imaginário da Natureza segundo Disney, com leões bonzinhos, fofinhos e macios que podemos acariciar.

Não é assim. Os leões comem-nos como qualquer outra comida. A Natureza é tudo, a perfeição é o tudo e tudo é beleza, bondade e harmonia, mas também ferocidade, horror e indiferente maldade.

As reações dos media quando a indiferença assassina da Natureza nos surpreende é extraordinária – perante as cheias incontroláveis a revolta é contra a incapacidade dos estados para as conter e resolver. Relembro sempre a primeira página do jornal Le Monde perante a destruição da central nuclear de Fukugima por um Tsunami de proporções gigantescas que dizia, em entupidas parangonas – O Homem tem que aprender a viver com as suas máquinas – como se o que tinha acontecido fosse uma falha técnica e não uma demonstração da invencibilidade da capacidade destrutiva da Natureza… como se a uma ação de proteção não correspondesse sempre uma ação destruidora maior, demostrando a nossa debilidade, a nossa fraqueza final…

O habitat do homem é a paisagem, e a paisagem é a natureza domesticada. Todas essas ideias de regresso à natureza, do selvagem, levam-nos a caminhos terríveis, porque quando nós achamos que a natureza é perfeita e indiscutível, a nossa capacidade critica desaparece… aceitamos tudo e retiramos o nos distingue com humanos, que é o nosso inconformismo perante a insistente manifestação das imperfeições da Natureza e a nossa capacidade para tentar construir um mundo melhor.

E é através dessa capacidade critica que nós construímos o mundo domesticado, no qual conseguimos, finalmente, viver.

Em segurança, em prosperidade, em partilha dessa segurança com as outras comunidades – enfim, o Paraíso!

A primeira coisa, que é extremamente importante para trabalhar em Paisagem, é entender a ideia de natureza e a ideia de artificio construído.

O ponto mais alto de sofisticação na construção de ambientes artificiais é conseguir dotá-los de capacidades de autonomia e independência de esforços de acompanhamento e manutenção.

Não é uma questão de aparência… as questões de aparência já se encontram de tal forma resolvidas que com enorme frequência o mais atento dos mortais atribui uma condição natural a um ambiente que foi artificialmente construído.

Claro que esse é o objetivo, essa é a missão do arquiteto paisagista. E é ainda uma forma de antropocentrismo – a ideia de inclusão das outras comunidades nos nossos espaços, que se sucede à corrente de exclusão espacial que levou à construção de escacha áridos e inabitáveis, não responde realmente a uma vontade de benefício dessas comunidades, embora o faça, mas sim a uma tomada de consciência, por sofisticação do conhecimento, de que a situação para as comunidades humanas é melhor na partilha, porque produz espaços mais autónomos, mais sustentáveis e menos suscetíveis às ameaças, saber partilhar o território onde vivemos, para que esse território consiga ter uma vida saudável.

Esse é o desafio e esse é realmente o maior dos artifícios.

Quando nós conseguimos desenhar uma paisagem completamente artificial que se consegue completar com a capacidade de inclusão de todas as outras comunidades, como se fosse uma paisagem natural, com a sustentabilidade de uma paisagem natural, portanto com a capacidade de autonomia da condição natural, temos um paraíso; temos um artifício perfeito.

E um artificio perfeito seria muito difícil de distinguir da natureza. Philip K. Dick em “Do Androids dream of electric sheep”, que serviu de base ao filme Blade Runner, centra a narrativa numa obsessão dos habitantes do futuro em relação aos resíduos do mundo natural.

Num mundo completamente transformado, artificializado, as relações com o natural são de contemplação de algo raro e precioso. Vivemos já isso hoje, na constituição de reservas e espaços dedicados à proteção do “Selvagem” que se justifica porque está em vias de total desaparecimento.

No livro, o “animal natural”, é um objeto de luxo, que raríssimos milionários conseguem ter. As outras pessoas têm que se satisfazer com réplicas que são evidentemente extremamente perfeitas, extremamente difíceis de distinguir do verdadeiro natural… e há replicas de vários preços, de várias qualidades. Claro que os humanos também são os replicados. E são de tal maneira parecidos com os “verdadeiros”, que só há uma maneira de os distinguir, que é através do teste de empatia. A empatia como última e mais resistente condição do Humano…

 

Topografia e paisagem

Figura2 – A pesca milagrosa, de Konrad Witz, 1444 (Disponível em: https://fineartamerica.com/featured/the-miraculous-draught-of-fishes-konrad-witz.html?product=acrylic-print Consult. maio 2023).

 

A primeira Paisagem, enquanto representação pictórica corresponde a uma pintura de Konrad Witz, que estamos agora a ver, realizada em meados do século XV respondendo a uma encomenda de um Papa genebrino de uma cena bíblica ambientada em Genebra.

A questão da reconhecibilidade do lugar, da identificação do lugar onde a cena se desenrolava era essencial, como num retrato é essencial reconhecer a pessoa retratada, mas a questão levantava-se pela primeira vez na história da pintura.

As questões de coerência ambiental, numa época em que as pessoas contactavam durante toda a vida com um número de imagens produzidas que se contavam pelos dedos de uma mão era completamente acessória, resultando evidente que a ninguém faria confusão, como hoje faria, que uma cena que reconhecemos como ambientalmente pertencente a um universo imaginário com características muito concretas em termos de clima, vegetação, arquitetura, etc., se transportasse para um lago alpino.

O problema estava noutro lado, porque até Conrad Witz, todas as representações do espaço exterior tentavam tornar reconhecível as ações que caracterizavam a relação entre as comunidades humanas e o ambiente em que viviam, mas de uma forma completamente abstrata, sem qualquer pensamento sobre poder ser reconhecido o lugar.

O que é realmente interessante como pista sobre o método em Arquitetura Paisagista é a estratégia que Conrad Witz escolhe para tornar inequívoco o reconhecimento de um sítio… Nós, filhos do modernismo, hoje, perante este problema não hesitaríamos em tornar reconhecível um sítio através de um edifício representativo, icónico, tornado símbolo de um lugar. E é, de resto, um lugar comum a identificação de Paris com a Torre Eiffel, Londres com o Big Ben, e ficamos surpreendidos com o facto de que Witz representa edifícios anónimos e mesmo ruínas, como que dizendo que os edifícios não têm a persistência no tempo capaz de se relacionar com uma cena que se tinha passado mil e quinhentos anos atrás.

E escolhe, como elemento de inconfundível reconhecimento, a Topografia, a grande Topografia remota e intocada, quase selvagem do skyline montanhoso de Genebra, ainda hoje reconhecível, e uma sucessão de outras topografias em aproximação gradual que ilustram um grau sucessivamente crescente de domesticação, de manipulação antrópica até ao plano da cena central da pintura. E ensina-nos de duas formas diferentes a importância da Topografia na Paisagem.

De facto, a Topografia constitui um elemento central como elemento de identidade de um Lugar, porque condiciona todo o funcionamento dos metabolismos do sítio – desde os movimentos da água, nos processos de erosão e de formação de solo, aos processos de favorecimento da colonização desse solo por plantas, a todas as formas de interação do sítio físico com os seus atores viventes… Mas também constitui o mais permanente de todos os elementos da Paisagem… o mais difícil de mudar.

 

Representação da realidade e projeto de paisagem

Estamos a ver imagens de nuvens de pontos produzidas no Atelier com sistemas de levantamento por laser scan.

Nós, no atelier, trabalhamos quase sempre com representações a partir do laser scan, e parece-nos fundamental não ter ninguém entre nós e o sítio que representamos. Quando trabalhamos com um fotógrafo, que se coloca “entre nós e o sítio”, ou um topógrafo, já estamos a filtrar a descrição do sítio.

Era fundamental que a paisagem fosse representada de forma a que qualquer pessoa que olhasse para a pintura a conseguisse identificar inequivocamente como Genebra e o seu lago.

O fotógrafo interpreta o sítio, o topógrafo faz as suas escolhas com critérios que não são os nossos. Nós temos de unir aquelas representações que, frequentemente, nos levam por caminhos que não são os corretos.

Ficamos distraídos, focados, muitas vezes, em coisas que não são importantes, e não vemos outras que são importantes e que não vamos considerar no projeto. Esta nova ferramenta está a ser muito reveladora e útil para o nosso trabalho, uma vez que o nosso ponto de partida, para tudo o que fazemos, são as preexistências. Com o laser scan nós podemos praticamente entrar no lugar, leva-lo para casa e olhar para ele com uma grande proximidade ao real – densidade de representação de cinco pontos por centímetro cúbico.  É quase uma representação perfeita. Claro que isto gera outros desafios, porque a ferramenta muda, trabalhando-se imediatamente num modelo tridimensional, em vez do habitual desenho bidimensional e, logo, o método também tem que mudar.

Figura 3 – Levantamento de um território com recurso a laser scan (PROAP)

 

Continuidade e mudança

Figura 4 – Cavalos do Salão Negro da Gruta de Niaux, região dos Pirenéus, França (Fonte: IMBROISI, Margaret Imboisi e Simone Martins. História das Artes. Disponível em: http://www.historiadasartes.com/nomundo/arte-na-antiguidade/pre-historia/attachment/1-39cavalos_niaux/ Consult. maio 2023).

 

Esta é uma imagem de que eu gosto muito, de uma pintura rupestre numa caverna que esteve oculta durante vinte mil anos. Um documentarista de origem alemã, Werner Herzog, fez um extraordinário documentário sobre esta caverna que constitui, de resto, a única forma de a visitar porque a caverna foi selada depois para proteção das pinturas rupestres e não se pode entrar, chamado “The cave of the lost dreams”. Esta caverna, situada nos alpes franceses, foi extremamente ativa há cerca de trinta e cinco mil anos como lugar ritual de uma comunidade que a usava para realizar diversos ritos e cerimónias sagradas. Há vinte mil anos, terá havido um movimento de terras e a caverna ficou totalmente tapada e inacessível. O espaço ficou, assim, isolado do mundo conservando, intacto, no seu interior, o que uma comunidade de há vinte mil anos deixava como marcas da sua vida.

Além de nos surpreendermos pela beleza extraordinária da pintura, nós que vivemos no século XXI, atribuímos imediatamente a maravilhosa obra de arte a um autor, a um artista, extraordinário e esquecido, maravilhando-nos com uma capacidade artística que nos surpreende porque imaginamos, erradamente, um antepassado nosso de há vinte mil anos numa condição de marginal humanidade. Mas erramos… Ao analisar estas pinturas por datação com carbono 14, foi-se percebendo que correspondem a sobreposições de intervenções sucessivas feitas com milhares de anos de diferença. É, no fundo, uma pintura contínua feita por uma cultura, não por uma pessoa, e constitui, assim, a mais maravilhosa metáfora da Paisagem. Sem medo de acrescentar qualidade ao que existia antes, evidentemente venerado, mas com o cuidado de não acrescentar a menos que se verificassem condições – que, pelos intervalos milenares das sucessivas sobreposições não se reuniam tão facilmente.

Além da imediata metáfora da paisagem e da sua construção, e da nossa relação com uma Paisagem reconhecida como Património, e que frequentemente somos tentados a congelar e musealizar, estas pinturas contam-nos uma história de continuidade, de ligação coesa entre o passado e o presente durante milhares de anos.

 

O projeto da ETAR

Figura 5 – Perspectiva dos novos Arcos d’Água que a travessem o Val de Alcantra / R. Black delin.; T. Bowles sculp. – London: John Bowles, ca 1750 (Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em: http://id.bnportugal.gov.pt/bib/rnod/32014 Consult. maio 2023).

 

Embora, pelas razões já frequentemente abordadas nesta conversa, o nosso trabalho comece pela investigação sobre o sítio, e essa investigação se constitua de diferentes matizes, a que não falta nunca a investigação cartográfica e iconográfica histórica, curiosamente, no vale de Alcântara, o registo mais antigo é este desenho descritivo da batalha de Alcântara, que teve lugar nesse vale em 1580, e em que se confrontaram, no final a crise de sucessão do rei Sebastião, o seu tio António, o Prior do Crato, e nada mais, nada menos, o rei de Espanha, Filipe II que seria, pouco depois, e precisamente em consequência do resultado desta batalha, Filipe I de Portugal.

Figura 6 – Batalha de Alcântara (Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em: https://purl.pt/1237/3/ Consult. maio 2023).

 

Mas o que foi o vale de Alcântara? Qual é o seu caráter?  Nesta imagem, podemos ver a largura do vale coberto de campos cultivados. É um registo de um ambiente rural claramente hortícola, mas, ao mesmo tempo, podemos ver personagens elegantes, que não estão vestidos como camponeses. Seriam muito provavelmente gentis-homens que desciam da cidade e usavam o vale como um sítio de lazer, de passeio, fugindo ao calor e às pestilências da Cidade… Seria, ao mesmo tempo, uma zona de produção agrícola e de lazer, algo que seria hoje correspondente a uma figura de Parque Agrícola…. Este caráter reforça-se em diversas representações pictóricas ao longo do tempo, como podemos ver nas imagens seguintes.

Embora o caráter agrícola e bucólico do vale se tenha mantido, como podemos constatar, até à era da fotografia, começamos cedo a verificar o início da construção de infraestruturas, como é o caso da ferrovia, que ainda não compete ainda, no seu estado primordial registado nesta imagem, com as continuidades transversais. De facto, afirma-se com clareza no protagonismo longitudinal do rio. 

Mais tarde, nos anos 30, teremos então a construção do viaduto Duarte Pacheco e da Avenida de Ceuta, quando se faz o encanamento da Ribeira de Alcântara. Dá-se então a transformação de uma topografia em “v”, marcada pela passagem da ribeira, num lugar em que o fundo do vale é uma placa completamente plana. O facto de se ter transformado esta paisagem e de se ter substituído a linha de água por uma estrada era, de certa forma, um motivo de orgulho, sendo imagem de diversos postais na época. Era um sinal de progresso, um motivo de celebração.

 

Figura 7 – ETAR de Alcântara (Fonte: PROAP).

 

O projeto que agora apresento é a resposta a um concurso de conceção-construção, lançado em 2009, para o desenho de uma reconversão da ETAR existente desde os anos 80 com qualificação do processo de depuração para inclusão de tratamento terciário. Esta alteração foi fundamental para a transformação da qualidade da água no Rio Tejo frente a Lisboa que nos permite, agora, ter a qualidade ambiental que podemos constatar através do regresso dos golfinhos ao Tejo. Ao concurso apresentámo-nos numa equipa com a responsabilidade da Arquitetura nas mãos de Manuel Mateus e Frederico Valsassina.

Tinha sido aqui estabelecida, nos anos 80, uma ETAR, que já representava uma segunda alteração topográfica significativa, de corte do terreno existente. A antiga ETAR tinha sido implantada a cotas o mais baixo possível, evidentemente, para responder melhor a solicitações de encaixe da rede de esgoto d3e uma enorme parte da cidade de Lisboa. Era a segunda alteração topográfica produzida artificialmente no vale de Alcântara.

O novo espaço teria de ser pensado, de acordo com as indicações técnicas da parte da equipa responsável pelos processos técnicos de depuração, como um edifício totalmente fechado, algo que nos assustou bastante, por estarmos a falar de um espaço com uma dimensão equivalente à de oito quarteirões de Campo de Ourique.

A dimensão assusta se pensarmos num edifício, mas recupera uma escala justa se pensarmos numa topografia… uma intervenção de caráter topográfico, em que surge imediatamente a oportunidade de lhe atribuir um caráter claramente protésico, redesenhando-se o perfil original do vale. No corte inicial, pode-se perceber que a ETAR se implanta por escavação por razões evidentes de cota, pela necessidade de ter cotas o mais baixo possíveis, e o edifício vai funcionar como uma espécie de prótese, que vai reconstruir a topografia do vale.

O que significa que a arquitetura começa a desenhar o edifício, não exclusivamente movida por circunstâncias espaciais relacionadas com os equipamentos que vai ter que alojar, mas com uma outra condicionante, de caráter contextual, que se vai desenhando numa série de perfis diferentes para garantir a continuidade da topografia de cada momento do vale.

Desenha-se então uma calote de betão, a cobertura do edifício, e o seu alçado mais visível, sobre a qual se criam terraços, com solo artificial. Estes são estabelecidos fixando uma pendente constante e fixando um limite de altura nos muros de contenção, fazendo com que cada terraço vá variar em termos de extensão consoante geometria altimétrica da própria calote. Onde a calote é mais inclinada os terraços são menores e nas zonas mais planas acontece o oposto, criando uma mancha completamente diferente e denunciando, através da geometria, a topografia da cobertura.

Foi considerada a possibilidade desta cobertura ser de acesso público e constituir um ponto de passagem através do vale. Propusemos que fossem hortas, funcionando como agregador e como equipamento que justificasse termos um acesso relativamente fácil para o lado poente do vale. Contudo, o caráter do equipamento obrigava a que não houvesse acessibilidade pública na cobertura, uma vez que se trata de um equipamento extremamente delicado em termos de segurança. O que fizemos foi, então, manter o desenho, utilizando ali apenas espécies comestíveis.

 

1 Conferência proferida no dia 26 de outubro de 2021, na disciplina de Seminários I e III 2021, sob o tema “Habitar o espaço Público”. Coordenação Bárbara Silva.