A “praxis” de um arquiteto é, possivelmente, uma das ações mais criticáveis na sociedade, tanto positiva como negativamente, dado o seu impacto social e real na vida em comunidade. Qualquer projeto elaborado por um arquiteto é consequente e o espectro da sua ação é quase imensurável.
O Livro Contra a Arquitetura, do antropólogo Franco La Cecla (1950),critica de forma veemente e dura a prática atual da arquitetura. Ergue e provoca um debate, confrontando a responsabilidade social no ambiente urbano construído com a prática autoral e global assumida por alguns arquitetos.
La Cecla argumenta que, na generalidade, os arquitetos estão muito preocupados com a sua demanda, buscando o reconhecimento “autoral” e revelando uma preocupação desmesurada com os seus clientes, o que resulta em pouca ou nenhuma consciência das implicações sociais, culturais ou políticas que daí advêm ou até mesmo do potencial do seu trabalho, enquanto agentes transformadores da sociedade.
”E se os arquitectos não fossem mais que artistas? Porquê imputar-lhes uma responsabilidade que não têm? (…) Os arquitetos produzem a “cereja”, apesar de cada vez mais o seu trabalho ser essencial ao marketing dos produtos, das marcas, das agências de moda do turismo ou do espetáculo para quais trabalham. Enfim, as archistars mais não são do que artistas ao serviço dos poderosos de hoje, úteis para estabelecer ”trends”, úteis a surpreender e atrair o público com achados que nem sequer são edifícios mas encenações, enormes cartazes publicitários amarrotados a formar museus. Sedes de agências de comunicação e um ou outro espectacular bairro disneyficado. Para quê implicar com eles? Afinal, fazem o trabalho de um humilde artista moderno: jogar com as formas e as forminhas no espaço que lhes é concedido, nada mais que um exercício formal, uma ginástica de manutenção do bom gosto.” (p. 31)
As considerações que La Cecla vai relatando de forma descomprometida e, por vezes, satírica são fruto da experiência do seu percurso profissional e da sua relação com arquitetos. É como um diário de bordo no qual ele vai conectando temas aparentemente divergentes ou em polos opostos, mas que vão criando argumentos a favor da sua posição em relação à arquitetura
Começando pelo mega realismo de Rem Koolhaas e pelo seu branding ArchiPrada, criticados duramente neste livro, pelo aproveitamento dos O.M.A. na brandização da arquitetura, e avançando por temas como os da crise vivida em 2005 nos subúrbios de Paris, refere:
“A crise que rebentou em França tornou evidente que não só os comuns cidadãos, mas também os adetti ai lavori – jornalistas, arquitetos, administradores, políticos – não são capazes de defender a existência das periferias e que, no máximo, o debate aceitável diz respeito à maneira de intervir para demolir ou corrigir os efeitos estruturais” (p. 92)
No capítulo Crema Catalana é feita uma incursão a Barcelona, nomeadamente, ao projeto Sagrera, comissariado pela Barcelona General, a convite de Josep Acebillo, La Cecla tentou imprimir ao projeto uma dimensão humana, descortinando a “maneira de viver” de um bairro e do seu entorno, Sagrera/Sant`Andreu, Verneda/San Martin e zonas circundantes.
Mais uma vez, a sua crítica recai no resultado final do projeto, pois apesar do seu trabalho de pesquisa inicial ter resultado num conjunto de diretivas para serem implementadas pela Barcelona General. Estas nunca foram postas em prática em prol da evolução daquele território. O modelo que acabou por ser implementado não foi ao encontro do espírito, da forma de habitar, nem da vitalidade catalã.
Várias outras experiências são relatadas ao longo do livro, a sua relação com Renzo Piano e o seu projeto para a universidade de Columbia, no bairro do Harlem. A sua passagem por Tirana, Milão e Palermo, esta última através de um olhar comparativo com a cidade de Bangalore:
“As cidades são submetidas a uma Medi(se)tização: sob o nome de atividades culturais, grandes eventos” um voraz aspirador transforma em pura imagem os serviços que faltam, a casa que não é construída, os parques que são esquecidos. Milão e Palermo e Nápoles são modelos talvez ainda mais avançados do que Bangalore, porque representam a dissolução da cidade como entidade física e a sua substituição (na presença agoniante da cidade) por um seu simulacro vendável.” (p.122)
Ao longo do seu livro, Franco La Cecla, vai tecendo inúmeras comparações e generalizações que, por vezes, são pouco justificadas e nem sempre aprofundadas. Tão pouco há referência às práticas jovens de arquitetura, atualmente desenvolvidas, que eventualmente serão mais radicais do que as realizadas pelos arquitetos de renome referidos pelo autor.
“…atenta, vivaz, profunda, dos conhecedores das formas de vida e dos tipos de habitar, dos visionários concretos, cientistas do humano.” (p.127)
Contra a Arquiteturaremata com um ímpeto de vitalidade. É certo que ao longo do livro o autor tece críticas com munição de artilharia pesada, mirando a arquitetura e os seus agentes de ação, denuncia projetos que em nada beneficiam a cidade, nem os seus habitantes. Apesar disso, no último capitulo As margens da Alegria, La Cecla escreve com otimismo, reclamando a invenção da cidade em conjunto com uma nova disciplina, esta disciplina não é mais do que a arquitetura em estado “puro”, sustentada pelos saberes, e não desvirtuada pelas razões erradas na sua maioria pela agressividade da economia.
Se esta nova disciplina for a real praxis da arquitetura, quer dizer que esta deu um passo à retaguarda, e colocou a mão na consciência, voltando a ser uma forma de projetar o futuro com todos e para todos.
“A cidade é um lugar de circulação de um material consistente que flui como um rio entre as margens de alegria.” (p.127)
LA CECLA, Franco – Contra a arquitetura. (trad. João Soares) Lisboa: Caleidoscópio, 2011.